“Vi aquilo que só estamos habituados a ver nos filmes”

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Aureliana Gomes, jornalista felgueirense da CMTV, esteve um mês na Ucrânia. Em Kiev, Bucha, Irpin e Kharkiv viveu uma experiência inesquecível em cenário de guerra.

Aureliana Gomes com o repórter de imagem Pedro Escoto e soldados ucranianos

Como é que surgiu a oportunidade de cobrir a guerra na Ucrânia?

Mal começou a guerra, costumava dizer aos meus colegas que gostava de ir. Um dia, o colega Secundino Cunha sugeriu o meu nome ao diretor multimédia Alfredo Leite. Ele falou comigo e lançou-me o desafio. Aceitei.

E qual foi a reação da tua família?

Nunca me disseram para não ir. Disseram-me logo que a decisão tinha de ser minha. Tive apoio da família e de amigos. E enquanto estive lá, notei que todos se preocupavam muito comigo. Recebia mensagens de toda a família. Mesmo aqueles com quem não tinha grande relação, preocupavam-se comigo.

Como foi chegar a um país desconhecido e em guerra?

A viagem foi complicada. Cheguei a Varsóvia e não tinha mala e aí começaram os problemas. Uma senhora percebeu o que estava a passar e ajudou-me. Consegui a mala e viajei de comboio até Kiev. As carruagens iam cheias. As mulheres e crianças estavam a regressar à capital, uma cidade mais calma e menos assolada pela destruição. Ao chegar a Kiev, confesso que os edifícios estavam com sacos de areia e havia muitos militares na rua, mas vi um cenário calmo. A vida parecia normal. Só as sirenes indicavam que podia haver problemas. Fiquei assustada, mas foi só até me habituar. As pessoas ouviam as sirenes e não se abrigavam… Enquanto estive em Kiev, não tive a noção exata da destruição causada pela guerra. Quando saí de Kiev, aí sim percebi o que realmente é um cenário de guerra. Bastou passar para a cidade ao lado…

Em serviço na Ucrânia

Como assim?

Ao chegar a Bucha, pela ponte de madeira, percebi de imediato a destruição. De Kiev a Bucha é como de Felgueiras à Lixa. Em poucos quilómetros passamos de uma cidade normal para outra completamente destruída. Foi incrível.

E em Kharkiv, como foi?

Tudo destruído. Edifícios lindíssimos destruídos. A destruição é brutal. Em Kiev, estava tudo direitinho, em Kharkiv o cenário é desolador. Tudo destruído, tudo em baixo…

“O medo que sentimos é diferente do que estamos a habituados a sentir por cá, por exemplo num dia de tempestade. Ouvimos as sirenes e isso incomoda, mas depois habituamo-nos”

Em algum momento temeste pela própria vida?

Não, mas senti tensão. É normal. Em Kharkiv, onde estive quatro dias, fomos a um local todo destruído, na companhia de militares. Fomos devidamente equipados, com colete de proteção, entre outras medidas. Quando chegamos lá percebemos que tinha sido o sítio onde tínhamos estado no dia anterior. Ou seja, arriscamos muito.

Nunca tiveste medo? Aquele medo que leva a perder o autocontrolo?

Nunca. O medo que sentimos é diferente do que estamos a habituados a sentir por cá, por exemplo num dia de tempestade. Ouvimos as sirenes e isso incomoda, mas depois habituamo-nos.

Os jornalistas são respeitados na guerra?

São. Para entrar onde quer que seja há check-points. Desde que se mostre a credencial não há qualquer problema.  Tínhamos um motorista que também era tradutor e fazia a ponte com os militares. No fundo, os militares percebem o trabalho que estamos a fazer. E, em termos gerais, foram sempre simpáticos.

A jornalista em serviço na Ucrânia

Estavas em Kiev quando António Costa foi encontrar-se com Zelensky. Como foi esse momento?

Foi marcante. Estar em Kiev e não ver o Zelensky é como ir a Roma e não ver o Papa, por assim dizer. Entramos por uma espécie de bunker sem nada, nem relógio, apenas um papel e uma caneta. Tudo em nome da segurança. Depois, entramos no Palácio, esperamos numa sala lindiíssima, com uns tetos fantásticos, até chegarem os dois e falarem à comunicação social. Foi um dia especial porque estive perto da pessoa de que todo o mundo fala.

E com que ideia ficaste do Presidente ucraniano? É o herói que proclamam em toda a Europa e um pouco em todo o mundo ocidental?

É. Se não fosse ele muito mais gente tinha fugido do país e tudo seria mais difícil para o povo. As pessoas gostam dele. Ele dá o corpo às balas e as pessoas admiram isso. Essa forma de estar dá força aos ucranianos.

“Quando vemos pessoas em lágrimas a dizer que perderam tudo e crianças a sofrer, emocionamo-nos…”

Do ponto de vista humano, como é que um jornalista se consegue abstrair da dor e dos efeitos que a guerra causa nas pessoas?

É difícil pôr o coração de lado, mas profissionalmente tem de ser. Claro que lá, quando se faz uma entrevista com tradutor, as emoções esbatem-se naquele espaço de tempo que medeia a pergunta, a tradução e a resposta. Mas quando vemos pessoas em lágrimas a dizer que perderam tudo, crianças a sofrer, emocionamo-nos. Um dia fui com uma senhora ao cemitério para ela visitar a campa do marido que tinha morrido e vi um rapaz desesperado aos gritos, a chorar perdidamente, sufocado, num grande sofrimento. Tive de sair dali porque aquilo perturbou-me. São momentos difíceis.

O que mais te marcou?

As pessoas e a forma de estar delas perante um cenário destes. Está tudo destruído, mas têm esperança. Dizem que vão reconstruir as casas, que vão conseguir erguer-se. Têm uma grande capacidade de suportar a dor e acreditam que um dia vão levantar tudo e voltar a ter uma vida normal.

A entrevista foi realizada em Santa Quitéria

Como era a tua rotina diária?

Na Ucrânia, a diferença horária é de duas horas. Saia do hotel cerca das 9 horas, procurávamos reportagem, recolhíamos o máximo de informação, depois ia ao hotel escrever para o jornal e fazer as peças ou diretos para a CMTV. Era das 9 da manhã às 10 da noite sempre a trabalhar. Não dava para mais porque existia recolher obrigatório.

Não passaste fome nem sede?

Não, embora comíamos sempre o mesmo, semana a semana. Chegamos a um ponto que já pedíamos uma omolete para comer algo diferente. As pessoas do hotel faziam o que podiam, coitados.

Um dos diretos para a CMTV

Mais alguma peripécia que queiras partilhar?

Uma história curiosa. Reservamos hotel em Kharkiv. De manhã, fomos fazer reportagem e de tarde quando chegamos para fazer o check-in o hotel tinha sido destruído. Incrível. Isso deu-me uma ideia do que a guerra é. Tivemos de procurar alternativas de alojamento e fomos parar a um sítio terrível, mas foram só três noites…

E deves ter encontrado um português, como é costume…

Sim, no hotel. Não sei se era da ONU, penso que seria. Ele disse-me que estávamos protegidos por causa da imagem de Nossa Senhora de Fátima que estava numa consola num dos corredores do hotel. Desconfiei que tivesse sido o meu colega Secundino Cunha que a tivesse colocado lá porque ele é especialista em questões da Igreja. Quando cheguei a Portugal, perguntei-lhe e ele disse de imediato: ‘ainda estava lá?’. Em qualquer lado, se encontra um português ou alguém com ligações a Portugal.

“Esta experiência transformou-me numa outra pessoa. Aqui, quando vemos um telhado destruído e uma família desalojada, parece o fim do mundo, mas quem passa por uma guerra é que tem a noção do que é desgraça”

Esta experiência na Ucrânia teve alguma influência na tua vida?

Do ponto de vista profissional e pessoal penso que saí mais valorizada. Cresci imenso sobretudo como pessoa. Vim da Ucrânia com a vontade de fazer ainda mais. Esta experiência transformou-me numa outra pessoa. Aqui, quando vemos um telhado destruído e uma família desalojada, parece o fim do mundo, mas quem passa por uma guerra é que tem a noção do que é desgraça. Vi aquilo que só estamos habituados a ver nos filmes. Vi muitas casas destruídas, vidas destruídas e gente a dizer que vai  reconquistar o que perdeu, seja a casa, seja a família que está longe. Vi um grande espírito de entreajuda e solidariedade. Saí da Ucrânia com a ideia de que nós não sabemos o que é sofrimento. Aqui, queixamo-nos de tudo sem razão. O que vi mudou-me para sempre.

Jornalista felgueirense com populares e militar ucraniano

Voltavas à Ucrânia?

Sim, já se fosse preciso. Foi uma experiência para a vida. Voltava a repetir, sem qualquer problema.

Foi a experiência mais marcante em termos profissionais?

Sim, claramente. Uma experiência única. Primeiro, nunca pensei que iria ver uma guerra aqui ao lado nos tempos atuais e poder estar lá a cobri-la. Depois, é algo que não se esqueça nunca mais. Confesso que fui um pouco a medo, até porque viajei sozinha e só lá encontrei o companheiro que trabalhou comigo, mas valeu a pena. Foi uma experiência para a vida, sem dúvida. Inesquecível.

VÍDEO

Aureliana Gomes explica, em poucas palavras, o que mais a marcou na cobertura da guerra na Ucrânia

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente entrevista. Parabéns Pedro Alves.
    A jornalista Aureliana Gomes relata uma cadeia de episódios, que testemunham as atrocidades e envergonham os russos. Gostei muito de ler, obrigado.

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