“O trabalho do arqueólogo é encontrar, proteger, registar e interpretar”

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Nuno Oliveira é Doutorado em Arqueologia na Especialidade Materiais e Tecnologias, no Departamento de História do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Este felgueirense, nascido em 1993, dirigiu várias escavações arqueológicas no concelho de Felgueiras e em muitas outras localidades.

Desde muito novo que “gosta do passado” no sentido de “perceber como chegamos aos dias de hoje”. O arqueólogo, afirma, não é um Indiana Jones. Tem, sim, um papel de grande relevância, cujo trabalho é moroso, paciente, onde todos os dias “trazem uma surpresa”.

Não escavamos dinossauros, nem o nosso objetivo é encontrar joias ou tesouros com intuito de os vender e tornarmo-nos ricos”, afirma.

Leia a entrevista.

foto: Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa

O que o levou a estudar Arqueologia?

O gosto pelo passado é algo que me acompanha desde criança. Sempre gostei de perceber como chegamos aos dias de hoje, tentar compreender de facto o evoluir da humanidade como um todo, ao qual alio o meu profundo gosto pelo estudo das peças, dos artefactos e das estruturas antigas.

Rapidamente percebi que encontrar os vestígios ancestrais, através de escavações, trazê-los à luz e tentar compreendê-los e dá-los a conhecer seria o caminho a percorrer. Creio que este aspeto, o da divulgação e da partilha com a comunidade, são fundamentais. Divulgando os sítios e os achados melhor se compreenderá em que consiste a atividade do arqueólogo. A Arqueologia é algo de muito prático, de terreno, e que permite expandir horizontes todos os dias. Aliás, é usual dizer-se: na Arqueologia, todos os dias trazem alguma surpresa.

O que “descobre” o Arqueólogo e que contributo dá para a sociedade?

Não escavamos dinossauros, nem o nosso objetivo é encontrar joias ou tesouros com intuito de os vender e tornarmo-nos ricos. A maior riqueza é encontrar e estudar os vestígios de ocupação humana antiga — e isso não há dinheiro que pague. Nós, arqueólogos, prestamos um serviço muito especializado e importante para a sociedade e para o conhecimento.

O arqueólogo tem como objeto de estudo os materiais e estruturas antigas realizadas pelo Homem, do séc. XIX até aos primórdios daquilo que é o ser humano. Percorremos, por isso, grande parte da história da humanidade — escavando e estudando.
Nos dias de hoje, a Arqueologia é o meio fundamental para, em primeiro lugar, garantir que não se destrói património que já é conhecido e, sobretudo, aquele que ainda é desconhecido. Podemos dizer que o papel do arqueólogo é descobrir, registar e escavar, com método científico, o que encontra. Cabe ao arqueólogo interpretar o que é descoberto e explicar o passado daquele sítio, lugar ou cidade.
Felizmente, o arqueólogo tem um papel bastante importante, por exemplo, em obras de reabilitação urbana — especialmente em centros históricos — ou, por exemplo, em obras de grande impacte sobre o solo (na construção de autoestradas, estradas, centrais fotovoltaicas e outras infraestruturas) e, muitas vezes, em obras privadas que se encontrem em áreas protegidas pelos PDM. O trabalho do arqueólogo é encontrar, proteger, registar e interpretar — e, por que não, valorizar — tudo o que for encontrado, em múltiplos contextos de trabalho. Estamos, por isso, cada vez mais relacionados com todos estes setores, tanto empresariais como do Estado.

Não temos grande semelhança com o Indiana Jones, que o cinema e os videojogos vão popularizando. Talvez 1% do nosso trabalho se possa relacionar com esse aspeto mais aventureiro.

O arqueólogo tem como objeto de estudo os materiais e estruturas antigas realizadas pelo Homem, do séc. XIX até aos primórdios daquilo que é o ser humano. Percorremos, por isso, grande parte da história da humanidade — escavando e estudando.

Da sua experiência profissional, o que mais destaca? O que mais gostou de fazer?

Para quem faz desta profissão a sua vocação, não há uma área que goste mais do que outra. Claro que não é muito agradável estar, por exemplo, a fazer um acompanhamento arqueológico no cimo de uma montanha no Inverno. Mas, quando se faz o que se gosta, não custa nada.

Colaborei numa escavação em ambiente urbano no Porto, fiz acompanhamentos arqueológicos em Chaves, estive envolvido em processos de conservação e restauro de peças arqueológicas — inclusive de Felgueiras. Fiz várias escavações neste concelho e estou, de momento, a fazer o acompanhamento arqueológico de uma central fotovoltaica de grande dimensão. Portanto, apesar da minha experiência profissional não ser muito longa no tempo, já tive a oportunidade de participar em vários projetos e tipos de trabalhos. Por isso, devo dizer que a Arqueologia nunca cansa — e estamos sempre a aprender.

Sem dúvida, o mais interessante continua a ser a escavação. Porque aí estamos a retirar com cuidado camadas de história e a registar tudo o que aparece para podermos contar a história, através de factos e dados concretos, daquele lugar. Recordo o que nos disse uma professora da Universidade do Minho, nas primeiras aulas: imaginem que a escavação é um livro; vocês vão retirando as páginas com todo o cuidado, através do colherim, fazendo todo o trabalho de registo para depois voltar a colar as páginas desse livro — para o interpretar e dar um novo olhar sobre o passado.

Nuno Oliveira a trabalhar no terreno

Esteve em escavações em Felgueiras. Quer falar-nos sobre isso?

Claro! Trata-se da minha terra, por isso tenho todo o interesse em falar disso. Estive sempre na direção das escavações. Os trabalhos de Arqueologia aqui em Felgueiras foram sempre realizados num quadro de escavações preventivas. Ou seja, um proprietário tinha de legalizar um muro da sua propriedade e esta situava-se já dentro de uma área delimitada e protegida, porque existem vestígios arqueológicos comprovados a poucos metros. Dessa forma, era necessário perceber se aqueles muros — que tinham sido feitos à revelia e sem autorização — poderiam ter ou não afetado estruturas arqueológicas.

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Um outro caso, que durou ainda algum tempo, era um processo em que o proprietário queria construir a sua habitação, mas como ficava numa área delimitada e protegida pelo PDM, houve a necessidade de fazer algumas sondagens para verificar a existência ou não de estruturas arqueológicas no subsolo. Infelizmente para nós, apenas registámos alguns fragmentos cerâmicos datáveis da Idade do Bronze. Nós, arqueólogos, queremos sempre — quando possível — encontrar vestígios de estruturas antigas mais ou menos conservados.
Em ambos os casos, os proprietários ficaram satisfeitos por não termos encontrado estruturas. Para nós, como disse, o objetivo era outro.

Cabe ao arqueólogo interpretar o que é descoberto e explicar o passado daquele sítio, lugar ou cidade.


E queria ressaltar um aspeto importante: apesar de não nos ensinarem, é fundamental saber explicar o que fazemos, o que está em jogo, e fazer entender a importância destes procedimentos aos promotores, empreiteiros e donos de obras — sejam elas públicas ou privadas — para que o nosso trabalho seja, acima de tudo, entendido e valorizado.

Mas quem sabe se, noutras obras, se houver necessidade ou obrigatoriedade de trabalhos de Arqueologia, podemos vir a encontrar algo verdadeiramente interessante e que mostre um pouco mais do passado de Felgueiras.

Qual é a sua “área preferida” dentro da Arqueologia?

Não tenho assim nenhuma área de preferência. Como ficou dito, já fiz um pouco de tudo dentro da Arqueologia. Sem dúvida, escavar por um lado e ensinar Arqueologia por outro — sobretudo o desenho arqueológico e o estudo de materiais arqueológicos — são efetivamente o que mais gosto de fazer. Mas tudo tem a sua importância e, ao mesmo tempo, os seus desafios. Além disso, recentemente consegui uma bolsa de doutoramento FCT para desenvolver o estudo do povoamento e materiais no litoral norte de Portugal, durante a Idade do Ferro, cuja tese foi defendida em meados de 2024.

Felgueiras pode orgulhar-se de ter um exemplo muito interessante de preservação e valorização patrimonial, que é o caso da villa romana de Sendim. Foi um trabalho extraordinário a sua escavação e preservação, no quadro da Arqueologia nesta zona geográfica. Foi um caso em que tudo correu como nós, arqueólogos, gostaríamos. A área foi escavada e estava muito preservada — é preciso que se diga — e, também por isso, foi necessário encetar projetos para a sua correta valorização. Mas ainda se pode fazer mais.
Temos também o caso do povoado de fossas da Idade do Bronze, conhecido pela Cimalha.

Que objetivos profissionais tem?

Para já, continuar na Arqueologia empresarial — é aí que se encontram algumas oportunidades de trabalho — mas com um pé na investigação científica, na publicação de artigos, além de lecionar no âmbito de formações práticas de algumas matérias da Arqueologia, sempre que tenho oportunidade e há necessidade.

É nas empresas que ainda se vai encontrando trabalho. Mas, claro, um arqueólogo está sempre aberto a parcerias, oportunidades de investigação, oportunidades mais particulares de trabalhos na parte de desenho arqueológico ou conservação e restauro.

Do seu ponto de vista, Felgueiras tem um vasto património arqueológico? Está devidamente estudado?
Claro que tem. Aliás, devo dizer que o património arqueológico e arquitetónico é muito vasto, e que atravessa praticamente todos os períodos históricos.

Podemos, desde logo, referir que a Idade Média está bem representada no concelho — basta atentar no exemplo paradigmático da Rota do Românico, e uma das jóias dessa rota é, sem dúvida, o Mosteiro de Pombeiro.

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Por outro lado, Felgueiras pode orgulhar-se de ter um exemplo muito interessante de preservação e valorização patrimonial, que é o caso da villa romana de Sendim. Foi um trabalho extraordinário a sua escavação e preservação, no quadro da Arqueologia nesta zona geográfica. Foi um caso em que tudo correu como nós, arqueólogos, gostaríamos. A área foi escavada e estava muito preservada — é preciso que se diga — e, também por isso, foi necessário encetar projetos para a sua correta valorização. Mas ainda se pode fazer mais.
Temos também o caso do povoado de fossas da Idade do Bronze, conhecido pela Cimalha. Aí, o traçado da autoestrada fez com que houvesse necessidade de escavação da área que ia ser afetada mas, por outro lado, na minha opinião, teria sido importante ter-se preservado esse lugar e alterado o traçado dessa infraestrutura.

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Aceito e compreendo que é muito importante que Felgueiras, finalmente, tivesse ligações à autoestrada, mas podia ter havido o cuidado de mudar um pouco o traçado da mesma — se tal houvesse vontade e se fosse possível. A questão é sempre a mesma: já havia traçado definido, compra de terrenos, e, quando o estudo de impacte descobriu um verdadeiro tesouro arqueológico, já era tarde.

Na altura, não havia muitos sítios arqueológicos no Norte de Portugal tão bem preservados, e cujo espólio é extraordinário.

A Arqueologia tem este pequeno problema: não é só conhecer e descobrir novos sítios. O estudo e valorização não demoram um ano. Demoram, por vezes, décadas até podermos ter sítios visitáveis, compreendidos e devidamente estudados.

Reconheço que, nos últimos anos, tem havido por parte dos decisores políticos um aumento na valorização e aposta na cultura e no património do concelho. A criação (finalmente) de um museu, que fica no centro da cidade, onde podemos observar um pouco do passado mais longínquo até ao presente, é sem dúvida um passo de gigante nesse sentido da divulgação e preservação da memória deste território. Porém, é sempre possível fazer muito mais.
Se está bem estudado? A minha resposta há cerca de 10 anos seria um “não” e depende bastante da cronologia a que nos referirmos. Mas devo dizer que tenho dois colegas de profissão — uma no mestrado e outro no doutoramento — que estão a estudar sítios de Felgueiras, nomeadamente os materiais e contextos da Cimalha e o Penedo de São Gonçalo (um dos melhores exemplares de arte rupestre preservados no concelho). Mas é um caminho que se faz ao longo do tempo.

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A Arqueologia tem este pequeno problema: não é só conhecer e descobrir novos sítios. O estudo e valorização não demoram um ano. Demoram, por vezes, décadas até podermos ter sítios visitáveis, compreendidos e devidamente estudados. Haja aposta e vontade de todos para que isso aconteça. Havendo vontade de investigar, e recursos para o fazer, quase tudo é possível.

A Arqueologia é devidamente valorizada?

Apesar da generalidade da população não compreender bem o que fazemos, creio que sim. Hoje, a Arqueologia como atividade e profissão liberal é valorizada e enquadrada, até por obrigação legal, em múltiplos setores — desde o setor privado (na construção) ao setor público (seja pelas Câmaras Municipais, seja pelo Estado central).

A nível salarial, ainda persiste alguma disparidade entre empresas de Arqueologia, mas também é algo que está a atingir algum padrão normativo.

Mas note: só em 2014 saiu o primeiro decreto-lei sobre um regulamento de trabalhos arqueológicos. Até àquela data, éramos nós e tutela a definir as melhores práticas e normas para, pelo menos entre nós, conseguirmos entender-nos e seguir as mesmas normas científicas e legais.

E a profissão de Arqueólogo?

Nos últimos 30 anos, tem vindo a ser crescentemente valorizada, compreendida e respeitada pelo Estado e pelo meio empresarial, ligado sobretudo a obras privadas, mas não só.
Ainda assim, há muito caminho a percorrer.

Constata-se bastante precaridade no trabalho no âmbito da arqueologia, sendo que a administração central continua a não apostar no trabalho de investigação, criando definitivamente a carreira de investigador devidamente remunerado, e por outro lado, continua a faltar uma ordem profissional para regular e normalizar o trabalho de arqueologia.

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Como referi, a nossa profissão tem um forte impacto e importância económica e social em múltiplos aspetos da vida quotidiana, porém até hoje (espero que isso mude mais cedo que tarde) não nos conseguimos organizar para criar uma ordem profissional com força pública, para que em muitos aspetos o nosso trabalho seja devidamente valorizado e melhor regulado.
Lembro que a Arqueologia pública ou empresarial começou ainda com Abel Viana (terá sido dos primeiros arqueólogos profissionais em Portugal). Desde meados do séc. XX até agora, parece não ter havido capacidade ou vontade de criar essa ordem — e que me parece ser um caminho objetivo para podermos ter mais peso e valor junto dos decisores públicos, sobretudo com o Estado central.

Olhando para o futuro e para as emergentes inteligências artificiais não creio que possam escavar, realizar a interpretação e valorização dos sítios arqueológicos. Podem e devem agilizar alguns processos, como auxiliar na descoberta de novos sítios, mas nunca poderão substituir o arqueólogo.

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